O Jesus histórico. Artigo de Roberto Mela

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03 Novembro 2022

"A obra de De Zan resume de forma sintética um volume impressionante de estudos por ele citados, catalogados e comentados", escreve Roberto Mela, padre dehoniano, teólogo e professor da Faculdade Teológica da Sicília, em artigo publicado por Settimana News, 02-11-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis o artigo.

O autor, Renato de Zan, doutor em Liturgia e em Sagrada Escritura, lecionou em Roma e Pádua e colaborou na tradução da Bíblia CEI (2008) e do Missal Italiano (2020). Foi consultor da Congregação para o culto e a disciplina dos sacramentos.

Neste livro, pequeno nas dimensões, mas repleto de ideias, quer apresentar ao leitor de forma simples, mas rica em dados, a possibilidade concreta de chegar ao Jesus histórico.

Gesù, il figlio del falegname. Due parole semplici sul Gesù storico (Bibbia per te 46)
Edizioni Messaggero, Padova 2022, p. 150, € 14,00
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Metodologia historiográfica

No primeiro capítulo de seu volume (p. 14-28), o estudioso analisa a história da ciência para descobrir o Jesus histórico.

A Primeira Pesquisa (1774-1953) foi seguida pela Segunda Pesquisa (1954-1984) que sustentava a possibilidade de se chegar ao Jesus histórico e não apenas aquele da fé ou de pensar nele apenas como um sábio filósofo.

A Terceira pesquisa (1985 - até hoje) recupera o judaísmo de Jesus, plenamente inserido em seu ambiente cultural e religioso.

O passo sucessivo de De Zan é ilustrar uma metodologia correta para chegar ao Jesus histórico (p. 29-49), ou seja, o que se sabe sobre ele a partir das fontes disponíveis, não aquele "real", que permanece inalcançável.

A metodologia historiográfica preocupa-se com quem escreveu um texto, o que escreveu, quando o escreveu, onde o escreveu, por que o escreveu e como o escreveu.

A metodologia histórico-crítica segue os mesmos critérios. Inclui a crítica textual, a tradução dos originais de forma filologicamente correta, a análise de sua autenticidade e a história das formas.

A criteriologia da historicidade dos textos bíblicos abrange vários elementos, que devem ser considerados em conjunto e não isoladamente.

Criteriologia da historicidade dos textos bíblicos

De Zan apresenta nove critérios a serem considerados na pesquisa sobre a historicidade de Jesus e seus ditos/fatos.

Para buscar as ideias de Jesus (sua ipsissima vox, mas não suas próprias palavras, as ipsissima verba), é preciso primeiro seguir o critério da incompatibilidade entre o estilo próprio dos evangelistas e o Jesus histórico. Por trás do estilo do evangelista pode estar a voz de Jesus (é preciso provar). Uma retroversão aramaica do texto também deve ser possível e deve-se ter em mente o critério da verdade lesiva e o controle social.

Relembrar elementos lesivos dos personagens (por exemplo, os títulos ofensivos dirigidos a Jesus ou suas próprias palavras pesadas para com os outros) e lembrar o controle social que era feito pelos ouvintes, ajuda a estabelecer a historicidade dos fatos aduzidos pelos textos.

Deve-se ter em mente também o critério do constrangimento, ou seja, o desconforto do narrador ao apresentar um episódio (por exemplo, batismo, tentações, processo, crucificação e morte).

Dois outros critérios são complementares: o da descontinuidade e o da continuidade. Pode-se atribuir a Jesus o que não é atribuível ao contexto judaico da época ou ao da Igreja posterior. No entanto, também podem ser palavras e expressões que estão em continuidade com o ambiente da cultura judaica em que Jesus estava inserido. São dois critérios muito delicados de usar.

O critério de atestação múltipla leva em consideração a recuperação em várias fontes de um mesmo episódio/parábola, etc. Não devem ser textos idênticos (poderiam ocultar um acordo prévio), mas ter semelhanças e identidades nos elementos fundamentais.

O critério da rejeição de Jesus por muitas pessoas contribui para provar palavras e fatos que comprovam a trágica conclusão do rabino de Nazaré.

O critério de coerência impõe a necessidade de situar um dito ou um fato dentro de outros ditos e fatos de Jesus historicamente comprovados, e evidenciar a coerência.

O estudioso J.D.G. Dunn também elaborou o critério de transmissão oral, que é muito complexo de administrar.

Fontes não cristãs sobre Jesus

No terceiro capítulo (p. 50-72), De Zan analisa as fontes não cristãs sobre Jesus.

Ele cita textos de Thallo, Mara Ben Serapion e Flávio Josefo. Analisa brevemente o testimonium flavianum, depurando o texto das expressões cristãs acrescentadas pelos escribas medievais, consideradas glosas explicativas. De Zan também relata uma versão árabe do testimoniun flavianum não retocada pelas mãos de escribas cristãos.

Os testemunhos vindos da literatura greco-latina também incluem textos de Suetônio, Tácito, Plínio, o Jovem e Luciano de Samósata.

Os textos de Suetônio (decreto de Cláudio para a expulsão dos judeus revoltados em Roma por causa de Cresto) e de Tácito (Jesus executado durante o reinado de Tibério pelo procurador Pôncio Pilatos) são muito importantes em relação a Jesus em nível geral e também em nível de cronologia paulina. Para ser preciso, Pôncio Pilatos não era procurador, mas prefeito. Deve-se considerar que apenas mencionar Jesus é impressionante. Jesus é um homem que viveu em uma aldeia remota nos limites do Império Romano...

No que diz respeito às tradições judaicas, De Zan menciona Qumran (Jesus nunca é nomeado e nem mesmo foi "monge" de Qumran) e os textos talmúdicos que falam de Maria e de um soldado romano chamado Panthera, mas que não dizem que seu filho era Jesus.

De acordo com o Talmud, Jesus foi apedrejado/pregado na véspera da Páscoa por feitiçaria/magia. As Toledoth Jeshu (= Genealogias de Jesus) é um texto hebraico, provavelmente do século X. d.C. violentamente polêmico com os cristãos. Centra-se no nascimento de Jesus e sua ascensão ao céu.

De Zan resume os dados com o seguinte parágrafo: “A partir desta rápida resenha sabemos, em síntese, que Jesus existiu. Foi rabino na Palestina, teve discípulos, realizou milagres, ensinou coisas que não foram do agrado da autoridade religiosa de Jerusalém, foi condenado à morte, foi crucificado na véspera da Páscoa durante o governo de Pôncio Pilatos, seus discípulos dizem que ele ressuscitou e veneram-no como se fosse um Deus.” (p. 71)

O nascimento e morte de Jesus

No cap. IV (p. 73-93), o autor estuda o problema histórico do nascimento e morte de Jesus. Isso comporta a análise do censo de Quirino e a conexão entre os relatos da morte de Jesus feitos pelos Sinóticos e o de João. O estudioso segue os acontecimentos de trás para a frente, desde a morte de Jesus na tarde de sexta-feira até o jantar na noite de terça-feira.

De Zan resume os dados da seguinte forma. “Jesus provavelmente nasceu em Belém, na bela estação de 6 a.C, durante um censo presidido por Quirino como governador extraordinário pro tempore na Síria. Esse censo poderia ter servido a Herodes, que morreu em 4 a.C., como um ato de sujeição após o erro político-militar cometido contra Sileu, rei dos nabateus: isto é, ter feito guerra contra os nabateus sem o consentimento do imperador. Jesus é chamado de Nazoreu porque fazia parte de um grupo de descendentes de Davi que morava em Nazaré e, por isso, também é chamado de Nazareno. Ele começou seu apostolado público na primavera de 28 d.C., quando tinha 'cerca de trinta anos' (Lc 3,23) ou, mais de acordo com os dados, quando tinha mais ou menos trinta e quatro anos. Ele viveu duas Páscoas, a de 28 d.C. e a de 29 d.C., e, antes de morrer, celebrou a Páscoa de 30 d.C., segundo o calendário dos Sinóticos (calendário essênio?). De acordo com o calendário do templo seguido por João, Jesus morreu, com razoável probabilidade, em 7 de abril de 30 d.C., véspera da Páscoa judaica que naquele ano caia no sábado.” (p. 92)

A parábola dos vinhateiros homicidas em nível do Jesus histórico

No cap. V da sua obra (p. 95-119), De Zan apresenta um exemplo concreto do caminho a percorrer para chegar à provável ipsissima vox de Jesus a partir do texto evangélico. Reconstrói a parábola dos vinhateiros homicidas em nível do Jesus histórico (Mt 21,33b -41).

Grande parte da análise se baseia no critério da incompatibilidade do estilo dos evangelistas com o Jesus histórico. Isso nos leva de volta ao alvorecer da pregação apostólica. Aqui será necessário aplicar os outros critérios para verificar se é possível levar a parábola de volta ao nível do Jesus histórico. O autor oferece uma análise detalhada do texto traduzido literalmente do grego e colocado em três colunas de forma sinótica.

Na pregação primitiva da Igreja, o texto da parábola tinha que ser o seguinte. “Um homem, plantou uma vinha e arrendou-a a lavradores e partiu para uma viagem. A (seu) tempo, ele enviou um servo aos lavradores para que pegasse dos lavradores (retirar) frutos da vinha. Pegando-o, eles o maltrataram e o enviaram de volta sem nada. Depois, ele enviou outro servo. Bateram aquele também na cabeça e (o) ultrajaram. No final, ele enviou seu filho, dizendo: 'Talvez eles o respeitem'. Então os lavradores pensaram, falando entre si: 'Este é o herdeiro, vamos matá-lo e a herança será nossa'. Eles o mataram e o jogaram fora da vinha. O que, então, o senhor da vinha fará? Ele virá e matará os lavradores e dará a vinha a outro.

Segundo De Zan, a parábola original não tinha o objetivo de destacar o filho, ênfase própria da leitura alegórica realizada pela Igreja com a introdução da citação grega de Is 5,1b-2. Tal citação leva o leitor a ler a parábola de maneira alegórica: o dono é Deus, a vinha é Israel, os servos são os profetas, os lavradores são os líderes de Israel e o filho é Jesus.

Segundo o autor, o tema abordado pela parábola original é a relação de heteronomia que os agricultores tinham que respeitar para com o dono da vinha. Tudo o que os agricultores fizeram mostra que eles não quiseram a heteronomia, mas a autonomia do senhor, não respeitando o arrendamento. Aliás, o desejo de autonomia levou-os a maltratar os servos, a não dar o devido fruto da vinha e a matar o filho.

Isso, segundo o estudioso, constitui o tertium comparationis. Ou seja, a parábola apresenta uma situação; sobre esta mesma situação os ouvintes expressam sua opinião, o que acaba sendo uma autoacusação porque a situação da parábola que eles julgam é a situação que eles mesmos vivem. Para De Zan, essa consideração bastaria para atribuir a parábola ao Jesus histórico.

Seguindo outros critérios metodológicos, o estudioso aporta outras considerações.

A redação sinótica fez da parábola uma alegoria da história da salvação. É uma mudança de perspectiva em relação à parábola original que tratava de um tema caro a Jesus: a autonomia de Deus, pecado que repete o de Adão. O critério de coerência mostra que a parábola trata de um tema coerente com a pregação de Jesus: em nome das regras rabínicas, os judeus vivem uma autonomia de Deus (cf. Mc 7, 1-13, espec. v 9-13).

O critério da coerência em relação ao ambiente judaico mostra que o conceito encontrado na expressão "a herança será nossa" não pertence à cultura bíblica. A herança é sempre um dom de Deus. Também o conceito de "subtração da videira" não pertence à cultura bíblica, porque a videira, mesmo que castigada por ter produzido frutos verdes, permanece sempre a videira de Deus.

O critério de descontinuidade em relação à Igreja primitiva destaca o fato de que esperava a parusia de Cristo, não o retorno de Deus Pai (na parábola apresentado como vingativo). Se a parábola fosse invenção da Igreja nascente, o tema da ressurreição (referida com a citação de Sl 118, 22-23) teria sido integrado à história e não justaposto, como se encontra na redação sinótica.

O critério da coerência com a situação histórico-ambiental da época de Jesus evidencia a normalidade da presença de latifúndios, a prestação de trabalho agrícola e contratos de arrendamento honrados com os produtos do latifúndio. Com a morte do legítimo proprietário sem herdeiros, o arrendatário passava a ser dono da terra em que trabalhava.

De Zan conclui: “A parábola dos vinhateiros homicidas, despida de todas as peculiaridades da redação sinótica, mostra-se como um relato verdadeiro (o que Jesus conta poderia ter acontecido) ou provável. A fisionomia da parábola arcaica pertencente à Igreja primitiva oferece a possibilidade de atribuí-la ao Jesus histórico tanto porque se distancia do pensamento judaico, quanto porque difere do pensamento da Igreja nascente, e, ainda, porque responde aos usos e costumes do tempo de Jesus." (p. 117)

A ressurreição e a história

No sexto e último capítulo de sua obra (p. 119-136), o autor trata do tema da relação entre a ressurreição e a história.

De Zan não quer fazer teologia, mas estudar a fidedignidade histórica dos textos que falam do que os apóstolos, as mulheres e os discípulos viveram após a morte de Jesus.

Estuda, portanto, de maneira especial, os temas do sepulcro vazio e dos encontros pascais ou aparições de Jesus.

A princípio ele expõe as posições negativas sobre a ressurreição. O racionalismo filosófico apoia a teoria do engano ou do roubo, aquela da morte aparente e a teoria da alucinação.

A crítica das fontes aceita apenas Mc 16,1-8 (sepulcro vazio) e exclui os demais Evangelhos como dependentes de Marcos.

A escola das religiões vê na ressurreição uma invenção mítica como aquela presente nos contos egípcios ou nos contos judaicos sobre os sequestros celestes.

Para a escola da história das formas (Bultmann), a ressurreição consiste no fato de que Jesus vive no evento da pregação de sua mensagem.

Marxen distingue entre "ver o Crucifixo" (experiência feita pelos discípulos) e a ressurreição por obra de Deus (interpretação de "ver o Crucifixo").

Sepulcro vazio e aparições

Em resposta a essas e outras objeções, De Zan apresenta os resultados dos últimos estudos.

A hipótese do furto não é convincente devido à sequência dos fatos e ao costume da visita de parentes e amigos ao túmulo dos mortos. No NT, não há testemunho de um culto ao sepulcro. Nas acusações dos sinedritas contra os apóstolos, nunca há uma acusação de roubo do cadáver.

A morte aparente não é sustentável, dada a flagelação, crucificação e transfixação do corpo.

A alucinação não pode ser experimentada por mais de quinhentas pessoas ao mesmo tempo (cf. 1 Cor 145,6).

As variantes do número e nome das mulheres reforçam a fidedignidade histórica do relato e não afetam a convergência das informações. As mulheres presentes podiam ser em maior número do que aquelas explicitamente mencionadas. (NB: na p. 128 linha 1 corrige em Mc 15.40-41)

A prioridade de Mc não exclui a validade dos outros Evangelhos, já que também existem a fonte Q e as fontes particulares de Mt e Lc.

As histórias evangélicas não são míticas porque não colocam os fatos na origem da humanidade e pelo fato do controle social existente na época de Jesus sobre as informações divulgadas.

Fatos não podem ser separados de sua interpretação (Chabot, Marrou). A Igreja usa uma linguagem variada e não única para expressar o fato da ressurreição. A invenção do relato do sepulcro vazio é uma teoria que não se sustenta, porque é afirmada sem prova e, portanto, sem provas pode ser negada (quod gratis probatur, gratis negatur). O sepulcro vazio tem uma importância periférica na experiência dos discípulos. Aquela central é dada pelas experiências de aparições e diálogo com Jesus vivo.

A menção do testemunho das mulheres, não aceito como juridicamente válido no tempo de Jesus, é um sinal de confiabilidade histórica. 

Na Igreja nascente, o sepulcro vazio nunca foi usado como prova apologética.

Finalmente, deve-se lembrar que os discípulos não aceitaram a ressurreição com muita facilidade. Foi preciso algum esforço. Não há espaço para nenhuma teoria do entusiasmo. A transformação dos discípulos de homens teimosos, medrosos, traidores, fugitivos em testemunhas fortes, convictos e despreocupados com as ameaças e perigos mortais que poderiam incorrer só pode ser explicada pelo repetido encontro com o Ressuscitado.

A obra de De Zan resume de forma sintética um volume impressionante de estudos por ele citados, catalogados e comentados. Estão listados na bibliografia nas p. 141-145.

O livro é recomendado a todos aqueles que desejam se aproximar dos dados fundamentais sobre o Jesus histórico e se educar na criteriologia científica e bíblica necessárias para alcançar resultados confiáveis e corretos sobre os textos bíblicos analisados.

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